Esta edição não pretende tecer comentários gratuitos ao precário lineup e à auto indulgência do Rock in Rio ou ao estado da arte do propósito de festivais de música no Brasil e no mundo em 2024. Presta-se apenas a descrever o poder transformador (cóf) de um sonho (cóf) em realidade (cóf).
Ato I
Alguns poucos posts atrás, falávamos do ano mirabilis que 1994 foi, em vários sentidos, para o Brasil. Provavelmente não tenha ficado claro no texto, mas ficou absolutamente cristalino neste episódio do recomendadíssimo podcast O Último Plano, sobre os 30 anos do Plano Real.
Lendo o igualmente recomendadíssimo Dias de Luta que eu já havia comentado antes, e puxando pela minha memória, parecia que 1985 ia ser esse ano, pelo menos durante o mês de janeiro. Tancredo Neves ganhava em Brasília a primeira eleição pós-ditadura em 21 anos. E a algumas centenas de quilômetros de lá acontecia o pantagruélico - tanto para padrões nacionais quanto internacionais - Rock in Rio.
Minha versão de menos de 9 anos de idade não passou incólume pela experiência de ver boa parte dos maiores astros da música nacional e internacional de forma inédita, não exatamente ao vivo, já que a idade não permitia a despeito das férias, mas nas reprises resumidas nas tardes seguintes e em toda a cobertura feita pelos demais programas da Globo.
Blitz e Queen seriam os dois primeiros discos (excluindo obviamente música e histórias infantis) que eu ganharia dos meus pais e Pepeu Gomes, Paralamas, B-52’s e AC/DC me convenceriam que a guitarra era o instrumento a se empunhar.
Como pouca gente tinha vídeo cassete em casa, só era possível “reviver” os momentos do festival por revistas que registraram o evento ou, anos depois, pelo testemunho de veteranos que tinham estado lá* (vejam a nota de rodapé!).
Ato II
Seis anos depois, ou o equivalente a trinta na percepção temporal infantil/adolescente, chegava o Rock in Rio 2. Passei esse intervalo um tanto alheio ao que vinha de fora, vivendo à base do rock BR, especialmente Titãs e Legião.
Nesse meio tempo, tínhamos visto a virada do New Wave para uma nova geração de dance music, rock com permanente experimentando crossovers nos Estados Unidos e a mistura de quase tudo isso na Inglaterra, com o som de Manchester. Uma boa amostra dessas bandas estava presente no festival, desde os emergentes Deee Lite, até os vaiados Happy Mondays e o Guns´n´Roses em seu absoluto auge.
Desta vez consegui acompanhar todo o festival madrugada adentro e deixar gravando (sic) as partes que não pude assistir. Fiquei intrigado pela exótica banda brasileira de heavy metal que cantava em inglês chamada Sepultura e principalmente impactado pelo fenômeno Faith no More que, 8 meses mais tarde, viria a ser o primeiro show internacional que eu veria.
Quando a maratona acabou, assim como os fenômenos de abstinência pós Olimpíada ou Copa do Mundo, precisava de uma fonte de música e informação musical permanente. Por acaso, três meses antes tinha sido inaugurada a MTV no Brasil. Mas essa é outra história que já contamos e podemos recuperar futuramente.
Aquele plano de empunhar a guitarra ainda esperaria um ano e meio, aguardando a abertura de uma vaga na escola de música.
Ato III
Outros dez anos depois, finalmente tinha chegado a vez de ir ao Rock in Rio. O lineup mantinha o espírito das duas primeiras edições e trazia muitas bandas pela primeira vez ao Brasil, de dinossauros a calouros como o Queens of the Stone Age**.
Voltando de lua de mel em Bariloche no dia anterior, fomos eu e minha ex*** de ônibus no primeiro fim de semana para o sábado, segundo dia do festival. Encontramos meus amigos da minha então banda pseudo punk e chegamos bem na hora da Cássia Eller, que estava no auge e viria a morrer no final daquele ano para o choque do Brasil. Pegamos o Barão Vermelho revivendo o momento icônico do primeiro Rock in Rio ao tocar “Pro dia nascer feliz”, a primeira vez no Brasil do ainda pouco conhecido mas ultra-competente Beck e a também estreia do Foo Fighters em solo nacional****. Cometemos a atrocidade de ir embora depois de 3 músicas do headliner R.E.M*****. Lamentei no momento, mas fui voto vencido e era nossa primeira noite no Rio, não queríamos correr o risco do caos logístico na saída de Jacarepaguá.
No segundo fim de semana, voltei, desta vez com meu amigo Denis Molla******, para ver o Red Hot Chili Peppers defendendo o elogiado Californication e apreciar John Frusciante praticando sua guitarra. Em 2001 eu já estava com minha terceira e quarta bandas em curso e era um quase rodado frequentador de festivais. Os créditos finais, os fogos espocantes e o clássico tema do Rock ecoando nos alto falantes, não foi capaz de sensibilizar nossos corpos encharcados em um cenário de chão de lama e banheiros químicos devidamente lotados*******.
Ato IV
A partir da quarta edição do Rock in Rio e de seus derivados em solo europeu, a proposta toda degringolou e o festival se inspirou em Erasmo Carlos e virou um cover de si mesmo.
Para além do RiR, hoje em dia, a intelligentsia jornalístico musical (no bom sentido) e os geeks de música, que sabem como as salsichas são feitas, refletem sobre o que aconteceu com os festivais em geral********, a mudança de propósito para o que eram originalmente destinados e seu futuro sombrio e instagramável.
* BÔNUS TRACK - Anton Schwyter dá seu testemunho sobre o primeiro Rock in Rio
”Minhas primeiras experiências com shows de rock são bem antigas, vi várias vezes bandas como os Mutantes (fase progressiva) e Made in Brazil quando era adolescente. Vi alguns shows que me impressionaram: Rick Wakeman apresentando Viagem ao Centro da Terra no Ginásio da Portuguesa (tinha 14 anos!!!) e Genesis no Ginásio do Ibirapuera (tinha 16 anos!!!). Depois assisti Queen no Morumbi no inicio dos vinte anos. Mas foi além das minhas expectativas estar no primeiro Rock in Rio! Primeiro pelo tamanho, a quantidade de gente, e mesmo a tecnologia (som alto, mas bom), telões em que se podia ver e entender o que se passava no palco. No dia que estava lá não consegui assistir direito o Queen na integra, começou na madrugada, e já estava cansado, todo moído e sujo de lama (tinha chovido), não consegui aproveitar, mas minhas lembranças são da incrível conexão da banda com a audiência.
No sábado minhas expectativas do gramado melhorar infelizmente não deram certo, o que era gramado virou simplesmente barro de vez. Mas em termos de música foi êxtase: começou com o Pepeu Gomes, depois só pauleira: Whitesnake, Scorpions, Ozzy e finalmente AC/DC. Me lembro que tudo terminou acho que umas 6 da manhã, já tinha alguns raios de sol. E pela segunda vez, tive que deixar meu tênis no barro do RiR (já tinha deixado outro na sexta!). Compensou todo o perrengue da viagem, do barro e tênis perdidos, tudo. Enfim, foi fantástico!!!!”
**Ninguém conhecia a banda, ainda em seu primeiro disco, e nem os mediamente informados não sabiam que eles eram considerados a salvação do rock no momento. O show foi hostilizado pelos fãs do Iron Maiden e acabou na delegacia por conta da decisão do baixista de ter tocado pelado por toda a apresentação.
***Parafraseando o lendário Júpiter Apple.
****Ainda em ascensão, o Foo Fighters não tinha destravado a skin rock de estádio, e era grande o interesse de ver um remanescente do Nirvana. Curiosamente, Dave Grohl aniversariava no dia, recebendo um bolo de aniversário no palco de sua então namorada Melissa Auf der Maur, então baixista do então aposentado Smashing Pumpkins.
*****Cada vez que toca R.E.M n´O Urso, um panda nasce e eu choro sangue lembrando dessa trivia.
******Vizinho e baixista da nossa primeira banda, formada em 1994 e do Seminal, que viria a se formar no ano seguinte.
*******Diante do calor e da falta de chuva dos últimos dias, resolveram acionar as mangueiras para refrescar quem estava perto do palco. Este último dia foi o único de lotação máxima, 250 mil pessoas, e os banheiros químicos já estavam bem usados pelos dias anteriores do festival no momento da abertura dos portões.
********Alô, LollaPalooza, alô, Coachella.